"Não Governo Sem o STF": A Perigosa Contradição na Democracia Brasileira
Aprofunde-se na polêmica declaração do Presidente sobre a dependência do STF para governar. Entenda os riscos para a separação de poderes e a democracia no Brasil.
A declaração do Presidente da República, de que "eu não governo se não for ao STF" e que "cada macaco no seu galho", ecoou como um soco no estômago da inteligência coletiva e reacendeu um debate crucial sobre a saúde da democracia brasileira.
Essa afirmação, mais do que uma constatação, é uma confissão e, para muitos, uma distorção perigosa do arranjo democrático, expondo a fragilidade das relações entre os poderes e a patológica dependência do Judiciário para resolver impasses políticos que deveriam, idealmente, ser dirimidos no voto e na negociação.
O contexto dessa fala é cristalino: em 2 de julho de 2025, o Presidente defendeu abertamente a necessidade de sua administração recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) para destravar pautas e reverter derrotas no Congresso Nacional. A justificativa, proferida em entrevista à TV Bahia, foi a de manter a "harmonia" e o funcionamento da República, reforçando a ideia de que cada poder deve "ficar no seu galho". A declaração específica veio após o Congresso derrubar um decreto presidencial que aumentava a cobrança do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), levando o governo a acionar o STF para tentar reverter a decisão.
A Falácia do "Cada Macaco no Seu Galho" e a Dependência Judicial
Ocorre que, se a balança da República estivesse realmente equilibrada e cada poder respeitasse sua esfera de atuação, a intervenção do Judiciário em questões tipicamente legislativas ou executivas seria a exceção, e não a regra para se "governar". A declaração do Presidente expõe uma verdade incômoda: o Executivo, ao invés de construir maiorias sólidas e negociar politicamente suas pautas com o Legislativo, tem encontrado no Supremo uma espécie de "tábua de salvação", um porto seguro para reverter reveses parlamentares.
Essa narrativa de que "não se governa sem o STF" é, no mínimo, preocupante. Ela sugere que o Executivo abdicou, em parte, de sua capacidade de articulação política com o Congresso. Se o sistema democrático funcionasse como deveria, as leis seriam propostas pelo Executivo, debatidas e aprovadas ou rejeitadas pelo Legislativo, e a Constituição seria a baliza para todos. O Judiciário, por sua vez, entraria em cena para dirimir conflitos de legalidade ou constitucionalidade, e não como um órgão para "aprovar" ou "desaprovar" políticas públicas que não conseguiram luz verde no Parlamento.
Quando o presidente de uma nação declara abertamente sua dependência do poder Judiciário para "governar", ele está, sem querer ou querendo, atestando uma falha grave na engrenagem democrática. O professor Elival Ramos, por exemplo, considera o ativismo judicial como uma "disfunção no exercício da função jurisdicional", que ocorre em detrimento, principalmente, da função legislativa e administrativa. Esse uso excessivo ultrapassa as linhas demarcatórias da função jurisdicional, incorrendo em desrespeito ao princípio da separação dos poderes, consagrado no Artigo 2º da Constituição Federal.
A Hipocrisia do Ativismo Judicial e Suas Consequências
E a hipocrisia aqui é gritante. Por um lado, há um discurso frequente, vindo de diversas esferas políticas, sobre o suposto "ativismo judicial" do STF, com alegações de que a Corte estaria "legislando" ou "governando" em demasia. Por outro lado, o próprio chefe do Executivo afirma que não consegue governar sem recorrer a esse mesmo Judiciário. Ora, isso é uma contradição em termos. É como reclamar do fogo enquanto joga gasolina na fogueira. Se o Poder Executivo constantemente busca o STF para mediar ou reverter decisões do Poder Legislativo – como vimos no caso do IOF e em outros embates fiscais – ele não está defendendo a separação dos poderes; está, ao contrário, instrumentalizando o Judiciário para contornar sua dificuldade de construir consenso político.
O que essa frase revela é a triste realidade da nossa política: o jogo político não se dá mais apenas nas negociações entre o Palácio do Planalto e o Congresso Nacional. Ele se move para o Supremo, transformando a Corte em um palco de última instância para embates que deveriam ter sido resolvidos na arena legislativa. E isso tem um custo altíssimo para a democracia.
Primeiramente, desgasta a imagem do próprio STF, que se vê arrastado para o centro de disputas políticas, fragilizando sua imparcialidade e gerando críticas sobre sua suposta partidarização. Segundo analistas, o ativismo judicial pode levar a um quadro de tensão entre a esfera política e o Judiciário, catalisando reações sociais inflamadas e com reflexos sobre o equilíbrio da democracia. Em segundo lugar, esvazia o Poder Legislativo, diminuindo sua relevância e sua autonomia, fazendo com que as decisões parlamentares se tornem meras etapas antes da "decisão final" do Supremo. Isso contribui para uma perda de poder de barganha do Executivo nas votações no Congresso, criando riscos para a governabilidade. E, finalmente, mais grave ainda, cria uma cultura de dependência e judicialização que impede o amadurecimento das relações políticas, postergando o diálogo e a construção de pontes em nome da canetada judicial.
O Caminho para uma Democracia Mais Robusta
Dizer "cada macaco no seu galho" e, ao mesmo tempo, afirmar que "não governa se não for ao STF" é uma falácia que precisa ser desmascarada. Se o presidente realmente acredita na separação dos poderes, seu foco deveria ser aprimorar a articulação política, a negociação e a capacidade de convencimento junto ao Congresso. Não se governa uma nação complexa como o Brasil apelando para uma terceira instância a cada impasse. Governa-se com legitimidade popular, com capacidade de liderança, com diálogo e com a construção de alianças que respeitem o processo democrático.
O STF não foi criado para ser o "plano B" de um governo em apuros, mas sim o guardião da Constituição. Sua função é garantir o cumprimento da lei e arbitrar conflitos de constitucionalidade, e não substituir o papel dos poderes eleitos em sua tarefa de governar e legislar. Críticos do ativismo judicial, como o professor Lênio Streck, argumentam que ele pode ferir gravemente a função e independência dos Poderes Legislativo e Executivo, permitindo que juízes não escolhidos pelo povo decidam sobre a vida em sociedade.
Essa declaração, portanto, não é um sinal de força, mas de fraqueza na articulação política. Não é um elogio à harmonia entre os poderes, mas uma constatação da sua desfuncionalidade. E nós, cidadãos, não podemos aceitar que a governabilidade do país seja refém dessa dinâmica viciosa. Exigir que nossos líderes políticos cumpram seu papel de negociar, de construir pontes, de respeitar o voto popular no Parlamento e de não terceirizar para o Judiciário suas responsabilidades é fundamental. O futuro do nosso país exige menos "macacos fora do galho" e mais líderes comprometidos com a verdadeira essência da democracia.
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